14 de abr. de 2012

É preciso estar atento e forte


Fazer psicologia clínica não é tarefa simples.
Os medrosos desistem, pois os caminhos da clínica atravessam despenhadeiros, pontes estreitas e fendas profundas. O vento pode soprar muito forte e é preciso firmeza para não desequilibrar. A distração pode favorecer um passo falso: neste caso o risco da queda é imenso.
Caminhar por estes caminhos exige muito mais do que teorias e técnicas.
É preciso ter capacidade de amar o pobre, o velho, o louco, o deprimido, o diferente.
É preciso ter coragem de ajudar o outro a transpor o mundo da obscuridade para o mundo da claridade.
Se assim não for, não se arrisque nesta estrada.

VanGogh- Akira Kurosawa

Caros alunos...aqui está mais um episódio de "SONHOS" do Kurosawa...Assistam e pensem nisso, sem pressa...voltem aqui quantas vezes quiserem...dialoguem com o cineasta.

Diante do mistério



Assim como a corsa sedenta suspira pelas águas, nossa razão anseia por conhecer toda VERDADE. Embora nem tudo possa ser conhecido, é certo que a nossa condição humana nos instiga a penetrar todos os mistérios para desvendá-los. A mente humana e feita para conhecer assim como a asa para voar, já disse Antonio Marchioni. Nossa mente envereda por todos os recantos buscando um saber...nada a consola...nada a detem nesse afã de saber TUDO. Assim somos.
Não vejo nada de mal nessa busca louca do saber. O que importa é não perdermos o respeito diante daquilo que ainda se faz MISTÉRIO.
Diante do MISTÉRIO é preciso saber curvar e reverenciar. No mínimo silenciar.
Aí está a beleza de sermos humanos, simplesmente humanos.

Ele vê o que eu não vejo



"O ato de ouvir exige humildade de quem ouve.
E a humildade está nisso: saber, não com a cabeça, mas com o coração, que o outro veja mundos que nós não vemos."
(Rubem Alves)

13 de abr. de 2012

O mundo é um moinho



Esculpir a nossa humanidade


Sócrates é geralmente conhecido como um grande filósofo, mestre do divo Platão - mas poucos sabem que ele era também um exímio escultor.
Um dia recebeu Sócrates um pedido do Prefeito de Atenas para esculpir a estátua de uma ninfa a ser colocada num bosque ao pé de uma fonte. O filósofo aceitou a encomenda. Sem tardança, mandou vir o bloco de mármore branco, de Paros, e pôs mãos à obra. Depois de mentalizar intensamente a efígie da ninfa, empunhou o martelo e foi desbastando o bloco de mármore. Grandes lascas voaram para a direita e para a esquerda.
Depois deste trabalho rústico, o escultor pôs de parte o martelo e outros instrumentos pesados e começou a trabalhar com ferramentas mais delicadas, como o cinzel, e, por fim, serviu-se dum finíssimo esmeril para dar acabamento à estátua.
Finalmente, estava na oficina do escultor uma efígie de imaculada alvura, uma figura de jovem esbelta, como os antigos imaginavam as divindades dos bosques e das águas.
Tão leve era o aspecto da ninfa que parecia flutuar livremente no ar; parecia antes uma entidade astral do que uma estátua material. Por quê? Porque ele não aceitava ter esculpido a ninfa; ela já estava oculta naquele bloco de mármore, desde o início, e muito antes de ser visível. Eu, dizia Sócrates, já via a ninfa no dia em que fui buscar o bloco de mármore; apenas retirei dele o que a ocultava aos olhos dos que não a podiam ver antes disso; nada acrescentei, apenas retirei o que a encobria. Sócrates dizia uma grande verdade.
Ele era um grande intuitivo. Viu o que os outros não viam.
No ser humano via ele muito mais do que o corpo material - via a alma imaterial. Mas, como nem todos podem ver o invisível, é necessário que alguém desbaste o bloco bruto e amorfo para que apareça a ninfa que nele está oculta.
Muitas vezes, é a dor desse escultor carinhosamente cruel. Parece odiar o bloco bruto, de tanto amor que lhe tem.
E, se o bloco humano não se defende contra as marteladas do sofrimento, a ninfa divina da sua alma pode manifestar-se. Mas, se o homem passa a vida em brancas nuvens, como diz o poeta, nada acontecerá. "
Quem pela vida passou em brancas nuvens Em um plácido docel adormeceu Quem pela vida passou e não sofreu Não foi homem, é projeto de homem. Que passou pela vida e não viveu!"O mundo está repleto desses projetos de homens, assim como uma jazida de mármore está repleta de projetos de ninfa.
O projeto de homem só conhece o gozo - e nada sabe da felicidade. E passa a vida toda em brancas nuvens, trocando gozos por felicidade. E, quando alguém procura mostrar-lhe o que é felicidade, o projeto de homem gozador diz que felicidade é utopia e misticismo de sonhadores que não conhecem a vida.
Para tirar de um bloco bruto uma efígie de beleza, deve o escultor, acima de tudo, ter a intuição daquilo que ainda não existe materialmente; deve poder ver para além dos véus da matéria; deve poder conceber antes de dar à luz a sua ninfa, mesmo por entre as dores de uma longa gestação.

TODA A FELICIDADE PASSA PELO SOFRIMENTO PRÉVIO. TODA A ALVORADA É A LUZ QUE SEGUE ÀS TREVAS DA NOITE.
Huberto Rohden

A lição de Virginia Woolf

Virginia Woolf fez e nos convida a fazer o exercício de descrever o mundo a partir da visão do outro. Flush era esse cachorrinho.


À medida que atravessava a grama alta, ele saltitava aqui e acolá, abrindo espaços na cortina verde. Os glóbulos frios de orvalho ou de chuva espalhavam-se em borrifos furta-cor em volta de seu focinho; o solo, em alguns locais duro, em outros fofo, frio ou quente, pinicava, incomodava e fazia cócegas nas almofadinhas de suas patas. Além disso, um enorme sortimento de cheiros combinavam-se nas variações mais sutis possíveis e intrigavam suas narinas; cheiros fortes de terra, cheiros doces de flores; cheiros inomináveis de folhas e de amoras; cheiros acres quando atravessavam a estrada; cheiros pungentes quando entravam nos campos de feijões. mas, de repente o vento trazia um cheiro cortante, mais acentuado, mais forte, mais lancinante do que qualquer outro - um cheiro que invadia o cérebro dele e aguçava mil instintos, liberando um milhão de lembranças - o cheiro de lebre, o cheiro de raposa.
Ele perseguia aquele odor como um peixe com pressa de subir o rio, pensando apenas em seguir em frente. esquecia-se da existência de sua dona; esquecia-se da existência de toda a raça humana.
Ouvia homens morenos gritando "Span! Span!" Ouvia chicotes estalando. Corria, disparava. Afinal, parava, atordoado; o encantamento se dissipara; vagarosamente, abanando o rabo em sinal de submissão, trotava pelos campos de volta ao local de onde a senhorita gritava "Flush! flush! Flush!" e sacudia seu guarda-chuva. E, pelo menos uma vez, o chamado foi ainda mais inevitável; a trompa de caça suscitou instintos mais profundos, aguçou emoções mais selvagens e mais fortes, que transcenderam a memória e fizeram com que se esquecesse da grama, das árvores, da lebre, do coelho e da raposa em um grito louco de êxtase.
O amor fez brilhar sua tocha em seus olhos; ele ouvia a trompa de caça da Vênus.
Antes de deixar completamente de ser um filhote, Flush já era pai.