6 de set. de 2008

Todas as mulheres em mim


Todas as Vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera
das obscuras!

Cora Coralina

EROS E PSIQUE



Havia um casal de rei e rainha que tinham três filhas, sendo que a mais jovem era a mais bela das mortais e estava sendo adorada no lugar de Afrodite, como deusa do amor e da beleza.

Afrodite com ciúmes ordenou a seu filho Eros que fizesse Psiqué se apaixonar pelo homem mais monstruoso. O pai de Psiqué consultou o oráculo de Apolo sobre o destino de sua filha, e a resposta foi que ela deveria ser levada ao alto de um rochedo onde se uniria a um monstro horrível.

Eros, no entanto, ao tentar atingir Psiqué com uma de suas flechas, acabou se ferindo e se apaixonando por ela. Pediu então ao vento Zéfiro que a transportasse para o seu palácio. No palácio de Eros, Psiqué foi servida, nos seus desejos, por vozes. Eros vinha à noite, se unia a Psiqué, sem se deixar ver, e desaparecia antes do amanhecer.

As duas irmãs de Psiqué foram à montanha chorar a ausência desta, que, entristecida, pediu a Eros que as trouxesse ao palácio. As irmãs foram trazidas ao palácio, mas ao verem-na tão rica e feliz sentiram muita inveja e quiseram conhecer o marido de Psiqué. Esta, prevenida por Eros, não respondeu às perguntas e mandou-as de volta.

As duas irmãs eram infelizes com os maridos – um deles era feio e avarento, e o outro era velho e doente. Psiqué, pouco tempo depois, já estava chorando novamente de saudades das irmãs e pedindo a Eros que as deixasse visitá-la de novo. Novamente as irmãs foram levadas pelo vento Zéfiro ao palácio, e desta vez foram mais convincentes e conseguiram fazer Psiqué acreditar que seu marido seria uma serpente gigantesca e monstruosa. Psiqué estava grávida, mas segundo suas irmãs, o marido monstruoso não tardaria a devorá-la.

Psiqué, então, confusa com a conversa das irmãs, acabou lhes confessando não saber quem era seu marido. As irmãs então a fizeram preparar uma lamparina e um punhal. Com a lamparina ela deveria iluminar o rosto de seu esposo e com o punhal cortar-lhe fora a cabeça. À noite, quando Eros já dormia, Psiqué acendeu a lamparina e viu o rosto do marido – um homem belíssimo. Não conseguindo mais pensar em matá-lo, deixou cair o punhal. Ao ver sua aljava, foi tocá-la e se feriu numa das flechas, desta maneira, ficando perdida e eternamente apaixonada por ele. Sem se dar conta, deixou pingar uma gota de óleo quente da lamparina no ombro de Eros, acordando-o e fazendo-o fugir do palácio.

Psiqué, desesperada com a ausência do marido, tenta se matar, jogando-se num rio, mas as águas a devolvem a terra. Pan, que estava por perto, aconselha-a que chame e procure pelo esposo. Enquanto isso, Afrodite fica sabendo que Eros está ferido, e pior ainda, apaixonado por sua rival Psiqué. Curiosa, vai ao encontro do filho. Psiqué, depois de pedir em vão ajuda às deusas Hera e Deméter, e cansada de procurar por Eros, resolve ir ao encontro de Afrodite, para lhe pedir perdão.

Afrodite, no entanto, a recebe muito mal, humilha-a, espanca-a e ainda lhe impõe quatro tarefas: A primeira tarefa seria separar uma montanha de sementes por espécie, durante o período de uma noite. Psiqué sabia ser uma tarefa impossível para ela, mas vê aparecerem várias formigas que a ajudam e as sementes são rapidamente separadas.
Afrodite, furiosa, lhe passa a segunda tarefa: exige que Psiqué lhe traga, sem falta, flocos da lã de ouro dos carneiros ferozes que existiam ali perto.

Psiqué pensa mais uma vez em se jogar no rio, mas um caniço da beira do rio lhe sugere uma solução para o problema – ela não deveria se aproximar dos carneiros com o sol a pino porque eles estariam enfurecidos e poderiam matá-la. Ela deveria aguardar o calor diminuir, os carneiros, indo descansar, deixariam flocos de lã presos nas árvores do bosque. Seria então fácil para Psiqué colher a lã de ouro que precisasse. E assim foi feito.

Afrodite agora mais furiosa, achando que Psiqué só conseguira se desincumbir das tarefas por estar sendo ajudada por Eros, ordenou-lhe que cumprisse mais uma: com um vaso de cristal dado por Afrodite, Psiqué deveria apanhar água da fonte dos rios Cocito e Estige (rios infernais – sua nascente era guardada por dois dragões).

Psiqué novamente pensou em desistir de tudo, mas desta vez foi ajudada pela águia de Zeus, isto é, o próprio Zeus metamorfoseado em águia cumpriu a tarefa por ela.
Veio então a quarta tarefa, e a mais difícil de todas: Psiqué deveria buscar no Hades, o reino dos mortos, com Perséfone, sua rainha, uma caixa que continha a "poção da beleza imortal" para ser entregue a Afrodite.

Psiqué, totalmente desesperançada, subiu a uma torre alta para se jogar lá de cima. A torre, no entanto, aconselhou-a a como se desincumbir satisfatoriamente desta empreitada: deveria levar na boca duas moedas para pagar a passagem de ida e volta ao barqueiro Caronte. Em cada mão levaria um bolo de cevada para dar ao cão Cérbero que guardava a entrada e saída do Hades. Ela sofreria quatro tentações ao longo do caminho: primeiro passaria por um homem coxo, puxando um asno também coxo que carregava lenha. Deveria recusar-se a ajudá-los. Depois, já no barco de Caronte, um velho surgiria da água e lhe pediria "carona" no barco. Psiqué não poderia ajudá-lo. A terceira tentação seria quando passasse por tecedeiras que também lhe pediriam ajuda, e mais uma vez deveria se negar em ajudar.

Por fim, a quarta tentação seria quando encontrasse Perséfone, não deveria aceitar o seu convite para jantar, o mais importante de tudo: logo que conseguisse a caixa, teria que retornar rapidamente sem abri-la. Psiqué seguiu as instruções da torre em quase tudo, mas não resistindo à curiosidade sobre a caixa da beleza, acabou por abri-la e caiu num sono mortal.

Eros então, penalizado, vem agora em socorro de sua esposa. Guarda de novo o conteúdo na caixa e desperta Psiqué novamente para a vida. Zeus eleva Psiqué à imortalidade do Olimpo. Do casamento nasce uma menina chamada Volúpia.



EROS E PSIQUÉ – SOBRE A INDIVIDUAÇÃO DA MULHER

Para entender melhor a leitura deste artigo, você precisa primeiro conhecer o conto "Eros e Psiqué", pois aqui se propõe um rastreamento simbólico da formação individual da mulher, a partir deste conto, que usa atributos de deuses mitológicos, para criar uma história arquetípica. Recompondo-a, compreendemos o eu feminino individual e socialmente.

Há um conflito no processo de individuação do feminino. Este conflito parte das expectativas da sociedade sobre a mulher, dos papéis que lhe são reservados, e de seus anseios individuais.

Ao lermos o mito de Eros e Psiqué, podemos interpretar instâncias relacionadas ao universo social feminino, tais como o casamento e os papéis de filha e de mãe.
O casamento é um rito que marca a transição entre papéis tipicamente femininos: os de filha, de esposa e de mãe. Toda mulher, ao vivenciar o amor com um homem, rompe o cordão umbilical que a liga à sua mãe. Esse rompimento compara-se à morte simbólica da filha e à passagem para as condições de esposa e de mãe, para as quais a menina deve tornar-se mulher.

A evolução narrativa do mito de Psiqué corresponde ao processo de individuação da mulher, que parte da condição de filha para a disputa com Afrodite (mãe de Eros), motivada pela vaidade ou busca de um ideal de beleza, como condição para encontrar seu próprio caminho. Para perceber isto, basta ao leitor fazer correlações entre a simbologia do conto e os processos psíquicos de formação do eu.

Psiqué: personagem feminina cuja beleza provoca os ciúmes de Afrodite. Representa a mulher que, motivada pela competição feminina em benefício da vaidade, parte em busca de seu próprio eu.

Vozes: servem Psiqué no Palácio de Eros, depois deste haver se apaixonado por ela, ao tentar atingi-la com uma flecha, para cumprir as determinações de Afrodite e fazer Psiqué apaixonar-se por um monstro. Como o feitiço volta-se contra o feiticeiro, Eros apaixona-se por Psiqué e arrebata-a ao seu Palácio, onde vozes a atendem em todos os seus desejos. Essas vozes representam à fase ideal do enamoramento por que passam as relações amorosas.

A chegada de Psiqué ao Palácio de Eros: representa a descida ao inconsciente. A auto-análise requer uma fase em que há vozes a serviço do eu, em que a felicidade parece haver sido encontrada definitivamente. Isto corresponderia à fase imediata ao já referido rompimento do cordão umbilical, em que a menina torna-se mulher pela experiência de enamoramento, pela sensação de casamento, sem estar necessária e legitimamente casada, mas apta a assumir os papéis de esposa e mãe.

As duas irmãs invejosas: exercem os papéis de filha e mãe dentro de seus casamentos, em relação a seus maridos, pois um é velho e feio (filha), e o outro é doente (mãe). Somente Psiqué parece não haver estagnado no papel de filha ou pulado para o de mãe, mas vive uma fase ideal importantíssima no processo de individuação da mulher, em que o ideal de felicidade se lhe afigura na presença amorosa de um homem provedor/protetor, para o qual a mulher parece predestinada.

O punhal e a lamparina: Psiqué, induzida pelas irmãs, aproxima-se de Eros com um punhal e uma lamparina, enquanto ele dorme, a fim de desvendar seu mistério e assassiná-lo. Porém, descobre nele um homem lindo e, ferida por uma flecha de sua aljava, apaixona-se por ele também. Mas deixa cair óleo quente da lamparina sobre seu ombro e o desperta. Ele foge, deixando-a sozinha. O punhal é o elemento que corta e separa, representa o corte racional necessário para a individuação da mulher, o distanciamento emocional necessário à compreensão de sua própria condição feminina, independente da figura masculina ou de qualquer outra. A lamparina é a luz da consciência, não dissociada do punhal.

A saída do Palácio: representa a busca independente da mulher por seu próprio eu, através do amor personificado em Eros.
A partir deste momento, na narrativa, a mulher enfrentará obstáculos, mas contará com o auxílio de outras entidades em benefício da auto-superação. Essas entidades são representações de virtudes essenciais no processo de individuação, tais como, o deus Pan (representa o instinto), Hera, Deméter e Afrodite (representam à rivalidade, a indiferença e a própria violência intrínseca ao processo de individuação, pois essas entidades negam ajuda a Psiqué, aumentando-lhe a dor e o sofrimento necessários à maturação individual).
Afrodite lhe impõe quatro tarefas impossíveis que representam situações de auto-superação:

1. Separar uma montanha de sementes por espécie, durante o período de uma noite: tarefa onde Psiqué conta com a ajuda das formigas. A montanha de sementes por espécie simboliza os complexos inconscientes que, individualmente, constituem elaboração e crescimento virtuais. As formigas representam à paciência, a diligência e a sabedoria instintiva para distinguir os complexos amontoados.

2. Trazer flocos da lã de ouro de carneiros ferozes: representam à impulsividade agressiva, irreflexiva e negativa. Esta tarefa leva Psiqué a pensar em suicídio pela segunda vez, mas ela conta com a ajuda de um caniço, que representa a salvação e a sabedoria, a necessidade de esperar para agir, de meditar primeiro para não agir precipitadamente.

3. Apanhar água da fonte dos rios Cócito e Estige, com um vaso de cristal dado por Afrodite: esses rios referidos são infernais e guardados por dois dragões, mas Psiqué conta com a ajuda do próprio Zeus que se transforma numa águia e cumpre a tarefa por ela. A água representa a vida no seu fluir até a morte que, por não poder ser retida ou controlada pela humanidade, deve ser manipulada apenas pela divindade, donde a intervenção de Zeus na narrativa.

4. Buscar a caixa da beleza imortal para entregá-la a Afrodite: essa caixa estava com a rainha Perséfone, no reino dos mortos (Hades). Mas desta vez Psiqué conta com a ajuda da própria torre na qual sobe para suicidar-se diante da dificuldade da tarefa. A torre simboliza uma construção humana como sua própria consciência, a introversão e o isolamento necessários à amplitude da mesma consciência.

Essas quatro tarefas têm em comum o grau de dificuldade desanimador que culmina com o desespero da personagem, sendo, no entanto, compensado pelo auxílio das formigas, do caniço, de Zeus e da torre que representam instâncias reguladoras do processo de maturação feminina.

As tentações de Psiqué:

A torre a aconselha a munir-se de duas moedas para pagar a passagem de ida e volta do Hades a Caronte, e de bolos de cevada e mel para dar a Cérbero, mas a alerta para tentações que têm em comum a motivação do lado bom de Psiqué. O processo de maturação do eu feminino requer, às vezes, uma renúncia à bondade, uma indiferença às necessidades alheias e periféricas diante da necessidade individual da mulher, por isso a torre pede a Psiqué que tenha forças para resistir à tentação de ser piedosa. Essas tentações estão representadas no conto por:

1. Um homem e um asno coxos: Este homem chama-se Ocnus e deixa cair a corda com que puxava o asno. Ele seria a representação da hesitação à medida que, naquelas circunstâncias, não se poderia sair do lugar (a busca da perfeição feminina não pode desobstinar-se diante da imperfeição humana ou animal).

2. Um velho que lhe pediria carona no barco de Caronte: esse velho representa neuroses, que às vezes dominam a consciência. Há pessoas que surgem no caminho da individuação feminina e cuja aparência madura pode indicar benefícios a este processo pessoal, mas deve haver resistência por parte da mulher, pois se tal processo é individual, a ajuda mútua recorrente pode não ser útil. Digo recorrente porque, em outros momentos do conto, Psiqué já fora ajudada por entidades mais experientes, estando inclusive gozando desta ajuda para discernir a tentação do velho. Quando você ajuda alguém, você tende a identificar-se com este alguém e Psiqué não poderia identificar-se com a maturidade do velho, como não o pôde com as limitações físicas do homem e do asno, e como não o poderá com o enredamento dispersivo das tecedeiras.

3. Um grupo de tecedeiras: essas tecedeiras seriam em número de três e estariam associadas às três moiras (Cloto, Láquesis e Átropo), as divindades do destino na Grécia. A lição aqui seria não dar atenção ao destino, não tentar entendê-lo e nem manipulá-lo, mas deixar que as coisas aconteçam. As tecedeiras poderiam representar, entre os fios de tecidos de seu trabalho, caminhos que poderiam dispersar Psiqué de sua tarefa principal àquele momento.

4. O convite de Perséfone para jantar: nada, por mais prazenteiro que seja, deve atrapalhar o alcance de sua meta. Estabelecer relações com as pessoas no seu caminho pode desviá-la de sua meta.

Finalmente, todas essas categorias de tentação são vencidas, cada uma com seu próprio ensinamento. Apesar de serem uma luta contra a própria natureza. Há, porém, uma tentação relativa à curiosidade feminina, que leva Psiqué a abrir a caixa da beleza e cair em sono mortal.

Isto lhe vulnerabiliza e a condiciona à intervenção masculina e divina personificadas respectivamente em Eros, que a ajuda e a desperta para a vida, e Zeus, que a imortaliza no Olimpo, dando origem à outra entidade feminina que recebe o nome de Volúpia.

Psiqué, ao desincumbir-se das tarefas e manter sua beleza, desperta medo em Eros por parecer com Afrodite. Mas, ao vulnerabilizar-se, reacende os cuidados de Eros.
Ser mulher é isto: um entre-lugar onde força, vaidade, autoridade e fragilidade se misturam para provocar o imaginário masculino.

Indicação de leitura:
BOECHAT, Paula Pantoja. Eros e Psiqué – sob o ponto de vista da individuação da mulher (p.97-112) In: BOECHAT, Walter (Org.). Mitos e arquétipos do homem contemporâneo. Petrópolis, Vozes, 1995, 198 págs.

(Helder Bentes)


O arquétipo junguiano

(Gilberto André Borges)
O inconsciente é parte da psique humana e está presente em todas as nossas atitudes e em todos os momentos de nossa vida. Durante o sonho é que se manifesta de maneira mais explícita e com todo o simbolismo de seus arquétipos. Segundo Jung, “o sonho é um fenômeno psíquico normal que transmite à consciência reações inconscientes ou impulsos espontâneos”. Esses fenômenos nem sempre fazem parte da vivência pessoal do indivíduo.
Segundo sua linha de argumentação, conclui que a mente também sofreu um processo de evolução: “Nossa mente não poderia ser um produto sem história.” E que nossa mente atual está baseada na estrutura mental dos homens pré-históricos, assim como nossa estrutura física também se baseia no corpo do homem primitivo. Estes elementos que aparecem no sonho e que não fazem parte das experiências do indivíduo são o que Freud chamava de “resíduos arcaicos” e que Jung denominou “arquétipos” ou “imagens primordiais”.
Arquétipos não são conceitos prontos, facilmente explicáveis pela nossa linguagem formal e lógica, pois são registros da evolução da nossa mente gravados no inconsciente através de símbolos e é esta linguagem simbólica dos arquétipos que encontramos no sonho.
Chamamos instinto aos impulsos fisiológicos percebidos pelos sentidos. Mas ao mesmo tempo, estes instintos podem também se manifestar como fantasias e revelar, muitas vezes, a sua presença através de imagens simbólicas. São a estas manifestações que chamou de arquétipos. A sua origem não é conhecida; e eles se repetem em qualquer lugar do mundo - mesmo onde não é possível explicar a sua transmissão por descendência direta ou por fecundações cruzadas resultantes da migração
Jung cita alguns exemplos que aliados a este argumento, discutem a veracidade da existência dos arquétipos em nossa mente. “Então por que supor que seria o homem o único ser vivo privado de instintos específicos, ou que a mente desconheça qualquer vestígio de sua evolução?”, pergunta.
Para ele, alguns sonhos adquirem um aspecto de premonição porque a mente inconsciente, assim como o consciente também se ocupa do futuro e também possui a capacidade de examinar e concluir. “... Pode mesmo utilizar certos fatos e antecipar seus
possíveis resultados.”
Assim como os complexos, os arquétipos também possuem uma energia própria, mas enquanto os complexos agem a nível individual, acarretando conseqüências para um só indivíduo, os arquétipos agem a nível coletivo até mesmo influenciando a humanidade a determinadas atitudes diante de fatos históricos.
Quanto mais avançamos cientificamente e julgamos elucidar os mistérios da existência, mais nos afastamos da natureza e ilusoriamente de nossos símbolos e mitos, pois apesar de o homem contemporâneo se julgar evoluído o suficiente a ponto de não necessitar de mitos, se encontra cercado por eles sem o saber. Apenas nos distanciamos de nossos mitos arcaicos. Isto pode ser prejudicial, pois estes símbolos não se perdem, mas passam a agir de maneira indireta e fazem isto por meio da força dos arquétipos, no inconsciente. Em nível pessoal, isto pode manifestar-se através de neuroses ou de comportamentos diversos que chamamos idiossincrasias e a nível coletivo, influenciar o modo de pensar e agir de todo o contingente humano em determinada época ou cultura. A repressão aos nossos símbolos inconscientes pode até mesmo ser perigosa e
Jung cita dois exemplos históricos recentes: a tão civilizada Alemanha, que deflagrou no início do século duas sangrentas guerras e a “guerra-fria” entre o mundo ocidental e a antiga União Soviética do período Stalinista. À luz da ciência, a humanidade afastou-se de seus símbolos e mitos e perdeu a noção do sagrado que dava significação a sua existência. As pessoas têm a impressão de que há, ou haveria, uma grande diferença se pudessem acreditar positivamente num sentido de vida mais significativo, ou em Deus e na imortalidade.”
Jung destaca dois tipos de símbolos: os “símbolos naturais” e os “símbolos culturais”. Os “símbolos naturais” são os símbolos inerentes ao desenvolvimento da psique humana e os “símbolos culturais” são aqueles assimilados pelo homem do seu meio e tomados ao pé da letra transformando-se em “verdades eternas”, o que é ilusão, pois verdades eternas não existem. O homem contemporâneo afastou-se de seus mitos e símbolos religiosos e “privouse dos meios de assimilar as contribuições complementares dos instintos e do inconsciente”.
Isto gerou um desequilíbrio, compensado, entre outras formas, a nível individual pelos sonhos. Jung disserta sobre a importância dos símbolos na interpretação dos sonhos. Os símbolos podem ter diversas funções. Dentro do sonho, por exemplo, podem querer transmitir ao indivíduo mensagens referentes às conclusões do inconsciente referentes ao futuro (premonições), ou uma gama enorme de significados, que devem ser analisados caso a caso, pois variam de indivíduo para indivíduo, segundo seus códigos de valores e sua vivência.

B I B L I O G R A F I A
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro. Ed. N. Fronteira, sd


PEIXINHOS DOURADOS-Sonhos


(CECILIA LOMÔNACO)
No sonho de Kurosawa que assisti na aula de Psicologia, a criança, símbolo de uma humanidade que ainda não se conhece propriamente, sai de casa. A criança sai do lugar comum que cotidianamente habitamos. Sai do universo consciente da razão, do mundo dos símbolos, das tradições, dos conceitos e das representações. Sai do mundo familiar em busca de algo que percebe, claramente, estar faltando. É uma personagem feminina que o conduz até o altar vivo, interativo, dinâmico. E é ali, diante de si mesmo, que encontra o que pressentia lhe faltar ...
No sonho de Cecília, daquele mesmo dia, havia um quarto com quatro camas, duas delas em beliche. Escolho para dormir aquela mais próxima à janela, mas dali vejo um aluno jogando peixes na piscina. Que inconveniente, pensei. Esses lambaris cheiram mal, vão sujar a água. Não é este o lugar onde deveriam estar. Incomodada com o mal cheiro, decidi mudar de cama e escolho me instalar no beliche, na cama do alto. Vejo então, com grande surpresa, peixinhos dourados, belíssimos, inacreditavelmente brilhantes entrando pela janela. Pareciam voar!
Acordo e tento compreender: - que mensagem é esta que estes símbolos vêm me trazer? Passo o dia tentando matar a charada. - Que sonho esquisito, estranho demais! Foi somente no dia seguinte que tudo pareceu se encaixar. Sentia-me já há algum tempo angustiada com o fato de estar com muitas aulas neste semestre. Achava injusto trabalhar mais do que meus colegas. Ninguém parecia se importar. Ao mesmo tempo não conseguia decidir qual disciplina deveria deixar de ministrar, caso decidisse reivindicar ajuda dos colegas mais "folgados".
Foram os peixinhos dourados que me fizeram compreender que o mal cheiro da inveja que sentia estava roubando de mim a alegria e o prazer de estar fazendo o trabalho que tanto gosto de realizar. Assim, como no sonho de Kurosawa, coloco-me diante de meu próprio altar e encontro o que procuro. Compreendo que a justiça não precisa da medida da igualdade, da uniformidade. Compreendo que justo é aquilo que escolho realizar com a beleza e o brilho dos peixinhos dourados que vieram me visitar.