(Fabíola Graciele Borges - Psicóloga)
“E ninguém é eu. Ninguém é você. Esta é a solidão”
Clarice Lispector
A maioria das pessoas entende solidão como a ausência do outro, até mesmo ligada à distância física. Dessa forma, diz-se que está sozinho por não ter ninguém presente fisicamente. É comum a aproximação dos termos solidão e isolamento. Ao ler o que pensadores atuais dizem a respeito, encontrei também esta visão de ausência do outro, ainda que não limitada à ausência física, mas referindo-se ao sentimento de estar só, sem alguém. Não desconsidero esta forma de compreensão, contudo, penso haver outras.
As idéias de Martin Heidegger sobre solidão foram ao encontro da minha experiência e me auxiliaram no processo de compreendê-la. Para ele, a solidão é a condição do ser-no-mundo. Ela faz parte da angústia existencial do homem, é ontológica, não pode ser extinta (HEIDEGGER apud FIGUEIREDO, 1994). Logo, os esforços que fazemos para não senti-la, apenas a transfiguram por determinado tempo. A necessidade de estar acompanhado, com o tempo todo preenchido, buscando incessantemente por conhecimento ou pelo ideal estético, constituem em subterfúgios muito utilizados pelo homem contemporâneo na tentativa de afastar de si a solidão. Todavia, ela apenas fica mascarada, pois faz parte da condição da própria existência do homem, não podendo ser arrancada como se fosse uma erva daninha.
Clarice Lispector se aproxima muito da compreensão de Heidegger sobre a condição humana e a solidão que lhe é inerente. De forma belíssima e extremamente sensível ela retrata em seus contos a solidão existencial como forma de ser no mundo. Ela diz:
Minha força está na solidão.
Não tenho medo nem das chuvas tempestivas
nem das grandes ventanias soltas,
pois eu também sou o escuro da noite
Notamos aí não somente a aceitação da solidão como algo inerente à sua própria existência, como também uma compreensão profunda do valor da mesma que a leva a tirar proveito desta condição. Ela aceita, caminha e tira forças da solidão. Ao invés de fugir, evitando assim o confronto com a dor de saber-se único e irremediavelmente só no mundo, Clarice se abre para seu “escuro” e o transforma em força de criação. Criação não apenas de uma obra, mas criação de si mesma enquanto ser humano.
Esta compreensão da solidão nos leva a abertura para o mundo e não o contrário, como pode acontecer quando a tomamos como algo que deve ser extinto ou somente como a ausência do outro. O dasein, isto é, o ser-aí de Heidegger, entendido como a abertura para o mundo, somente é possível quando o homem é ser-com, quando há partilha. Isso não exclui o que é vivido de modo único pelo sujeito. Nas palavras de Vieira e Freitas (s/d): “A presença do outro nos ajuda, compartilhando, efetivando a troca. Mas o outro não é o elemento para saciar a angústia ou para minimizar a condição de solidão”.
Tudo isso me auxilia pensar minha própria solidão e como a entendo, pois não a percebo como a ausência do outro. Não é possível estar e ser no mundo sem a perspectiva da alteridade. Mesmo que o outro esteja ausente, ele estará ainda entrelaçado no homem. Estar só é viver e experimentar coisas únicas, às vezes impossíveis de serem compreendidas por qualquer outra pessoa ou mesmo nominadas. Talvez, por isso, que os personagens de Clarice consigam expressar tão bem sua solidão, pois eles parecem viver “sempre no limite do inominável, o drama maior é o de não esgotar o próprio ser na linguagem, daí a busca sempre reiterada do originário, do irredutível” (ALVES apud COSTA, 2007).
Encontrei ainda Medard Boss com quem compartilho algumas idéias a respeito desse assunto. Para Boss, solidão e comunidade não se excluem, como comumente é pensado, porque ela é uma forma de comunidade, já que somente é possível ser sozinho tendo esta como referência. Considerando tal forma de pensar, a ausência de alguém, logo, não significa um vazio, mas um modo de sua presença (BOSS,1976, apud SÁ et al, 2006). Muito relevante, porém, na medida em que eu fazia coro com estas idéias de Boss, Stigar (2008) alcançou um grave que me fez perder a melodia. Ele questiona: “Existir com representará uma partilha verdadeira da existência?”. Pergunta capciosa.
Após algumas reflexões ensaiei uma resposta. Penso que existir com não represente uma partilha total da existência. Embora o outro permeie todo o processo de constituição de nós mesmos e seja essencial para nossa abertura para o mundo, há momentos que não podem ser experimentados igualmente por todos. Nossa experiência é única, assim como nossa existência e solidão. A solidão é a forma plena de ser si mesmo. Em O labirinto da solidão (1994), Octávio Paz diz que “... todos os homens, em algum momento da vida, sentem-se sozinhos; e mais: todos os homens estão sós. Viver é nos separarmos do que fomos para nos adentrarmos no que vamos ser, futuro sempre estranho”.
Conversando um dia com uma sábia conhecedora da cultura grega ela me disse que o teatro grego não era feito para as pessoas verem a tragédia, mas para terem visões. Por isso, o palco era uma arena que possibilitava vários ângulos de observação, além de ser comum o uso de substâncias alucinógenas nessas festas públicas. Fiquei impactada com a frase “era para se ter visões” e, por dias, fiquei pensando na abrangência e simbolismo de tal afirmação. Penso que se trata da nossa própria existência e experiência de estar no mundo. Somos levados a acreditar que há apenas uma visão da cena, da tragédia, isto é, modos limitados de pensar, sentir e viver nossa existência, sendo que na verdade há visões multifacetadas. O fato de você ter suas visões, diferentes das demais, o torna único e irremediavelmente só.
É assim que entendo minha solidão. Solidão de alguém que tem suas próprias visões, que sente de modo muito particular, mas que se abre para trocar com o outro o que é possível. Sou passarinho que faz coro, faz duetos, sabendo que nunca cantará a mesma canção da mesma forma que os demais do bando. Passarinho que sabe que se voar demais para a direita tentando se igualar aos outros, acabará chegando sempre na sua própria esquerda.
Um dia, tentando compartilhar minha experiência de existir escrevi o seguinte:
Às vezes sinto uma saudade de coisas que nunca existiram que chega a doer...
Às vezes sinto vontade de sair gritando pelo mundo anunciando o quão humanos somos...
Às vezes sinto minha alma tremer quando vejo coisas tão simples que chegam a ser inacreditáveis, mas sempre estiveram ali...
Às vezes não sinto nada, fico suspensa...
Às vezes sinto tudo de uma só vez e explodo, então, percebo que esta sou eu.
Quando acabei de escrever, me dei conta que era isso, mas não era somente isso e fiquei satisfeita com o “às vezes”. Percebi que, como diz o poeta, “as palavras são brutas” diante da experiência de ser no mundo. Posso compartilhar algo “ás vezes”, mas nunca poderei contar exatamente sobre mim, poderei cantar minhas dores, alegrias e histórias, mas quem sou verdadeiramente é algo que somente à minha solidão pertence.
PAZ, O. El labirinto de la soledad. Obras Completas (I). 2a ed. México, Fondo de Cultura Económica, 1994.
SÁ, R. N.; MATTAR, C. M.; RODRIGUES, J. T.; Solidão e relações afetivas na era da técnica. Revista do Departamento de Psicologia, UFF; v. 18, n.2 Niterói jul/dez 2006.
STIGAR, R. A solidão do ser. Disponível em http://www.webartigos.com/articles/6100/1/a-solidao-do-ser/pagina1.html. Acesso em 20 de novembro de 2008.