10 de nov. de 2010

Buber X Lévinas

(Neste curto ensaio quero focalizar a questão do conhecimento de Deus através do diálogo com a filosofia de Lévinas e de Martim Buber)

Lévinas se coloca em oposição às filosofias da totalidade. Como “totalidade”, Lévinas entende a tentativa da filosofia ocidental de “reduzir o outro ao Mesmo”. Isto, no seu ponto de vista representa uma violência, um desrespeito à alteridade. Esta filosofia situa o valor da vida humana no nível dos alcances cognitivos, reduz todas as coisas, bem como o Outro em simples objetos de conhecimento. Lévinas comenta que para a filosofia ocidental, somente aquilo que pode ser descoberto ou desvelado pode ser significativo. A ontologia é, então, imanência. Aquilo que não pode ser verificado e explicado racionalmente é, para ela, mera opinião (doxa). O filósofo acusa, então, a filosofia ocidental de valorizar uma imanência que marginaliza a transcendência. Há um esquecimento do Outro em favor do Mesmo. Para tanto, ele propõe um repensar crítico da tradição filosófica ocidental, com base em três aspectos: primeiro, do primado do conhecimento sobre a relação ética; segundo, do Si-mesmo em relação ao Outro e; terceiro, da evidência (imanência) em prejuízo da transcendência.

Lévinas reconhece que o Transcende (Deus) é “totalmente outro”. A relação do homem com Deus não pode se dar face a face, senão através do rosto do outro.

Uma relação com o Transcendente (...) é uma relação social. Aqui o Transcendente, infinitamente outro, nos solicita e nos chama (...) O infinito é a transcendência mesma (...) Se a totalidade não pode constituir-se é porque o infinito não se deixa integrar. O infinito não é objeto de um conhecimento – o que o reduziria a uma medida do olhar que o contempla – senão o desejável, o que suscita o desejo (...) E só a idéia do infinito mantém a exterioridade da relação (LÉVINAS, 1988, P. )

Lévinas, então, busca Deus no rosto do outro? De certa forma sim, mas o rosto do outro não é o de um Deus encarnado, como no cristianismo. No entanto, o filósofo se identifica com a passagem do evangelho narrado por Mateus[1], que diz que Deus deve ser visto na face dos famintos, dos encarcerados e dos indigentes. Lévinas, busca na tradição dos antigos profetas de Israel para clamar em defesa da viúva, do órfão e do estrangeiro. Ele considera que a relação entre o homem e Deus depende de uma relação homem a homem, em que o humano deva assumir a plena responsabilidade como se Deus não existisse. Sua convicção é de que interrogar-se sobre o ser ou o não ser é irrelevante. O que importa é preocupar-se com o bem do outro.

O Deus de Lévinas, portanto, acaba sendo alguém extremamente distante do homem.

Em um trecho de um ensaio que escreve sobre o sentimento de ser judeu, Lévinas diz que esse mesmo Deus totalmente distante, vem do interior, conforme citação seguinte:

"Deus que vela sua face não é, pensamos, uma abstração de teólogo nem uma imagem de poeta. É a hora em que o indivíduo justo não encontra nenhum recurso exterior, em que nenhuma instituição o protege, em que a consolação da presença divina no sentimento religioso infantil se nega também, em que o indivíduo apenas pode triunfar em sua consciência, ou seja, necessariamente no sofrimento. Sentido especificamente judeu do sofrimento que não toma em nenhum momento o valor de uma expiação mística pelos pecados do mundo. A posição de vítimas em um mundo em desordem, ou seja, em um mundo onde o bem não chega a triunfar, é sofrimento. Ele [o sofrimento] revela um Deus que, renunciando a toda manifestação solícita, convoca à plena maturidade do homem responsável integralmente. Mas no mesmo instante, este Deus que vela sua face e abandona o justo à sua justiça sem triunfo – este Deus longínquo – vem do interior. Intimidade que coincide, para a consciência, com o orgulho de ser judeu, de pertencer concretamente, historicamente, estupidamente ao povo judeu. “Ser judeu, isso significa... nadar eternamente contra a imunda e criminosa correnteza humana... Eu sou feliz em pertencer ao povo mais infeliz de todos os povos da terra, ao povo cuja Thorá representa o que há de mais elevado e de mais belo nas leis e ensinamentos.” A intimidade do Deus viril se conquista numa provação extrema. Por minha pertença ao povo judeu que sofre, o Deus longínquo se torna meu Deus. “Agora eu sei que tu és verdadeiramente meu Deus, pois tu não saberias ser o Deus daqueles cujos atos representam a mais horrível expressão de uma ausência de Deus, militante.” O sofrimento do justo por uma justiça sem triunfo é vivido concretamente como judaísmo. Israel – histórica e carnal – tornando-se novamente categoria religiosa." (LÉVINAS, 1963, P. 201-206)

Em Lévinas, Deus é totalmente transcendente e a sua relação com o humano é de assimetria. Deus não pode ser objeto de um conhecimento, o que o reduziria ao olhar que o contempla. O acesso ontológico baseado no conhecimento não respeita a alteridade de Deus. Trata-se de um acesso “violência” e isso é detestável. Por isso tal acesso deve se dar na justiça e nas relações não violentas. Deus é inabarcável em sua alteridade, ou seja, não se deixa de modo algum ser apreendido em conteúdos e conceitos.

Em Lévinas, a idéia de Infinito, mesmo que não constitua uma prova da existência de Deus, é bastante significativa pois representa a possível relação entre o finito e o infinito. Trata-se de uma relação onde não há reducionismos. A relação com o Infinito (próximo e transcendente ao mesmo tempo) é considerado um movimento ético.

O filósofo, também judeu, Martim Buber tem uma outra visão de Deus. Para ele, Deus mantém com o homem uma relação de reciprocidade, de proximidade, de cumplicidade. Trata-se de uma relação fundante, ou seja, a que sustenta as demais relações humanas. No entanto, é uma relação intimista, de parceiros.

Muito mais acentuadamente do que em Lévinas, em Buber pode-se ver claramente uma síntese entre e transcendência e a imanência divinas.

Assim como em Lévinas, Buber considera a impossibilidade da fusão do ser humano com Deus. A separação entre o humano e o divino é fundamental para que se mantenha a necessária dualidade do “encontro”.

Deus e humano são, para os dois filósofos, totalmente diferentes. A possibilidade de diálogo entre o humano e o divino é que permite ao homem transcender os limites que a natureza lhe impõe.

O que diferencia um do outro é a maneira como entendem a relação Deus-homem.

BUBER, M. Eu-Tu. São Paulo: Moraes, 1979

LÉVINAS, E. Totalidade e Infinito, Lisboa, Edições 70, 1988

LEVINAS, E. Difficile Liberté: essais sur le judaisme. Paris: Albin Michel, 1963/ Librairie Générale Française, 1984 (Le Livre de Poche), p.201-206.)


[1] Mt 25, 42-43

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