10 de nov. de 2010

À flor da pele


O que será que me dá

Que me bole por dentro, será que me dá

Que brota à flor da pele, será que me dá

O que me sobe às faces e me faz corar

E que me salta aos olhos a me atraiçoar

E que me aperta o peito e me faz confessar

O que não tem mais jeito de dissimular

O que nem é direito ninguém recusar

E que me faz mendigo, me faz suplicar

O que não tem medida, nem nunca terá

O que não tem remédio, nem nunca terá

O que não tem receita

O que será que será

Que dá dentro da gente e não devia

Que desacata a gente, que é revelia

Que é feito uma aguardente que não sacia

Que é feito estar doente de uma folia

Que nem dez mandamentos vão conciliar

Nem todos os ungüentos vão aliviar

Nem todos os quebrantos, toda alquimia

Que nem todos os santos, será que será

O que não tem descanso, nem nunca terá

O que não tem cansaço, nem nunca terá

O que não tem limite

O que será que me dá

Que me queima por dentro, será que me dá

Que me perturba o sono, será que me dá

Que todos os tremores me vêm agitar

Que todos os ardores me vêm atiçar

Que todos os suores me vêm encharcar

Que todos os meus nervos estão a rogar

Que todos os meus órgãos estão a clamar

E uma aflição medonha me faz implorar

O que não tem vergonha, nem nunca terá

O que não tem governo, nem nunca terá

O que não tem juízo.

Já faz algum tempo que eu estou pensando sobre o que escrever. Num dias desses a professora comentou que tinha que ser escrito na primeira pessoa, e que gostaria que fizéssemos uma analise de um filme, um livro, um poema, etc. Então pensei, se tem que ser na primeira pessoa então porque não falar de mim mesmo. Resolvi, vou falar de mim, de alguma coisa que me tocou durante essa disciplina, utilizando um desses meios sugeridos. Escolhi a música “O que será? (À flor da pele)” de Chico Buarque.

Eu já conhecia e gostava muito da musica “O que será? (À flor da pele)”, mas faz pouco tempo que ela começou a fazer sentido na minha vida. Estou passando por um momento muito especial, tanto na minha vida acadêmica, quanto na minha vida pessoal. Os paradoxos da vida humana, fim de curso, hora de fazer algumas escolhas, cobranças de vários lados, hora de estabelecer prioridades, amadurecer, aliar emocional e racional, vontade de voltar para casa dos pais e ao mesmo tempo vontade de ser independente. É, não é fácil. Então, no meio dessa crise, em uma tarde de sábado, escutei essa musica em uma palestra, e comecei a refletir. Percebi que ela descrevia muito bem o momento pelo qual estou passando e o motivo que me faz apaixonar cada vez mais pela psicologia. No entanto, após escutarmos a musica, a leitura que foi feita era totalmente contrária a que eu fazia em meus pensamentos. A palestrante dizia que o que a motivou a fazer psicologia era encontrar a resposta para toda aquela angustia demonstrada na musica, e que essa resposta é possível: achar a receita, achar as palavras, achar o limite, controlar. No mesmo momento eu pensei: “não pode ser, a magia do ser humano está justamente nisso, no que não tem sentido, no que não pode ser traduzido em palavras e muito menos explicado. Eu busquei a psicologia por isso, e se descobrir todos os sentidos da vida ela perde a graça.”

E todo esse meu pensamento foi identificado nessa disciplina, na posição fenomenológica. Descobri que é possível diminuir a angustia, tratar os “problemas psicológicos” de uma pessoa sem ter que explicar tudo. Assumir que em vários momentos vão surgir sentimentos inefáveis, e a melhor saída é apenas senti-los, nunca tentar cessa-los. Dessa forma, talvez possa encontrar um motivo, uma causa, um porquê.

Por isso, uma vez trouxe essa musica para apresentar para a turma. Achei que ela se encaixava perfeitamente nos temas que discutimos durante as aulas, e tinha a necessidade de compartilhar com outras pessoas a visão que tinha dela.

Aqui entra também outro aspecto discutido nas aulas, a forma com que cada pessoa enxerga a realidade depende de duas perspectivas. Respeito o ponto de vista da palestrante, e acho até legal ela ter pontos de vista diferente do meu (mais uma vez a magia do ser humano), pois isso permite a reflexão, a discussão, e consequentemente um aprendizado, um crescimento, e acho que a arte foi feita para isso mesmo, tocar cada pessoa de uma forma diferente, ser objetivo de questionamentos e reflexões. Então, vou falar um pouquinho da musica, sobre as minhas percepções e sentimentos em relação a ela.

Ao ouvi-la, não sinto angústia na voz da pessoa que canta. Sinto um encantamento, uma surpresa apaixonante em descobrir que algo pode despertar tal sentimento, tão singular, tão profundo, que nem pode ser traduzido em palavras. Encantamento em perceber que se é capaz de sentir algo que vai contra todas as lógicas da razão, que mexe com todo o corpo, com todos os sentidos. Me dá a impressão que tudo isso o faz sentir vivo, o motiva, dá prazer, é a essência da vida.

Bom, acho que tudo isso é o que sinto quando ouço a música e me identifico com tais sentimentos. Diante de tantos paradoxos naturais ao ser humano, surgem coisas que não precisamos explicar, encontrar receitas, motivos, controlar. Devemos apenas sentir. Sentir lá no fundo do peito, sentir a pele corar, por todo o corpo, tremores, ardores, aflição, ser nunca saciado, diminuído, sem sentir vergonha de sentir, e o melhor, ter certeza de que nem todos os santos, nem toda alquimia conseguir acabar com tudo isso. Isso para mim se chama paixão, e temos que ter paixão pela vida. Sentir frio na barriga no momento da espera, ser sincero, se deixar descontrolar e vir a tona todos os sentimentos, pela pele, pelos olhos, deixar que os outros vejam isso, nunca deixar-se saciar, a busca pelo conhecimento nunca acaba, e ter certeza de que ninguém vai poder tirar-nos isso nunca.

Isso é a magia do ser humano, que me encanta a cada dia que entro em contato com pessoas diferentes, cada um com sua história. Às vezes estão com a paixão pela vida apagada, e aí entra a psicologia. Despertar novamente a paixão pela vida e deixar as pessoas a vontade para que se permitam sentir é o meu objetivo. Essa busca é a minha paixão, tanto como profissional psicóloga, quanto pessoa.

(Larissa Molina da Costa - ex aluna)

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