FRANCINE ALVES MELLO (psicóloga - ex aluna da UFU)
NIETZSCHE: OS CONCEITOS DE VIDA E SOFRIMENTO COMO INSTRUMENTOS NA PRÁTICA CLÍNICA
Este texto pretende relacionar os conceitos de vida e sofrimento do filósofo Nietzsche com suas possibilidades de aplicação no contexto clínico.
Para tal filósofo a verdade não existe enquanto coisa em si, mas somente como interpretação do mundo, dessa forma o conhecimento não é possível. Nietzsche afirma que a própria crença de que seja possível o conhecimento é um fato moral e escreve “não é dos juízos lógicos, os mais inferiores e fundamentais, que pode proceder a ousadia de nossa suspeita; a confiança na razão, que é inseparável da validez destes juízos, enquanto confiança, é um fenômeno ‘moral’.” (NIETZSCHE, 1947, § 3 apud TRAPP, 2005). Assim cabe questionar qual o valor desses juízos aos quais chamamos de conhecimento, se são benéficos ou não para o homem.
Os valores precisam de critérios para serem avaliados e de acordo com Nietzsche a vida é
[...] o único critério de valor que se impõe por si mesmo, pois “o valor da vida não pode ser apreciado. Não por um vivente, por ser parte na causa e até objeto de disputa, e não juiz; nem por um morto, por uma outra razão.” (NIETZSCHE, s/d (1), §2). Critério universal de valor, a vida impõe-se pela força do próprio argumento, pois “seria preciso estar colocado fora da vida e, por outro lado, conhecê-la tão bem como aquele, como muitos, como todos que a viveram, para poder abordar o problema do valor da vida em geral; razões suficientes para entender que este problema é, para nós, um problema inacessível.” (Id., § 5 apud TRAPP, 2005).
A vida para o autor é uma realidade efetiva e Sócrates, os cristãos e idealistas, ao dividirem o mundo em mundo transcendente – verdadeiro, real e positivo – e mundo corpóreo – ilusório, negativo - fogem dessa realidade, preferindo sobreviver através de uma mentira. A verdade e o conhecimento nada mais são que a própria afirmação da vida pelo que ela é, pela apropriação dela e do que deseja ser, isto é, a própria vida em si mesma (SILVA, 2005).
[...] um dizer Sim sem reserva, ao sofrimento mesmo, à culpa mesmo, a tudo que é estranho e questionável na existência mesmo... Esse último, mais radiante, mais exaltado-exuberante Sim à vida é não apenas a mais elevada percepção é também a mais profunda, a mais rigorosa firmada e confirmada por ciência e verdade (NIETZSCHE, s/d apud SILVA, 2005).
Nietzsche faz uma exaltação à vida, à possibilidade de vive-la em sua plenitude e em sua realidade. Viver a vida sem reservas já que é algo que se afirma como verdade por si mesma, cujo valor não pode ser apreciado pelo homem já que ele está imerso nela. A divisão metafísica do mundo em real-transcendente e ilusório- corporal ameaça e enfraquece a vida, pois ao consagrar e enfatizar o que transcende ignora o homem real, e com ele a realidade da própria vida.
Para Nietzsche, dizer sim à vida também significa dizer sim ao sofrimento. Este além de ser força impulsionadora da arte é também uma resultante da compreensão da existência em sua essência, ou seja, o sofrimento é inerente à existência humana (VIGANÓ, 2003). O sofrimento tem função fundamental na vida, já que para Nietzsche todo sofrimento tem um lado bom, as dificuldades são normais na vida e a dor que sentimos surge da distancia entre o que idealizamos ser e o que somos na realidade (Philosophy...).
Enquanto inevitável e inexorável à vida, o sofrimento deve ser cultivado. Deve-se extrair dele bons frutos, pois segundo o filósofo, para conquistar algo que realmente valha a pena é necessário muito esforço e, portanto, e sempre, certa dose de sofrimento. Então, a felicidade nada mais é que a resultante do bom cultivo e utilização adequado do sofrimento, do qual nenhum humano está livre.
Nesse sentido é que Nietzsche critica as religiões, pois estas com seus dogmas amortizam a dor e ao fazê-lo, amortizam também a energia que ela nos dá a qual impulsiona para a resolução dos problemas e para chegar à felicidade, à conquista (Philosophy...). Nietzsche esclarece “na doutrina dos mistérios, o sofrimento é dito sagrado: as ‘dores das parturientes’ sacralizam o sofrimento em geral – todo vir-a-ser e todo crescimento, tudo o que se responsabiliza pelo futuro condiciona o sofrimento” (NIESTZSCHE, 2000, p. 117 apud VIGANÓ, 2003), pois, como já dito a dor é inerente à vida e condição essencial para a felicidade.
O filósofo ao mesmo tempo em que não nega a existência do sofrimento, também apresenta como bálsamo as artes, em contraposição às religiões e à moral, (VIGANÓ, 2003). As produções artísticas são para ele expressões humanas e também resultantes positivas do sofrimento, são por isso embelezadoras da vida humana.
Esses conceitos de Nietzsche contribuem de modo substancial para a prática clínica psicológica, visto que ao tomar a vida como justificada em si mesma, sem atribuições de ordem moral ou religiosa, o trabalho do psicólogo fica facilitado, pois se liberta das amarras sociais que permeiam o conceito do que é vida e qual a sua função no mundo. Assim, não é preciso tomar-se uma religião como centro de referência, pois o psicólogo tendo em mente a concepção de que a vida se justifica por si mesma, pode trabalhar com seus pacientes aspectos psicológicos mais ligados à realidade terrena da sua existência e não concepções ligadas à espera por uma vida melhor após a morte, em um céu, por exemplo.
Quanto ao sofrimento, cada vez mais nos vemos envolvidos e incitados pela mídia e indústria farmacêutica a utilizarmos medicamentos que cessem a dor. Tais medicações apenas retiram a sensação do sofrimento e não a sua causa, isto é, essas drogas não atuam no modo de funcionamento psíquico que ocasiona o sofrimento. Estamos inseridos em uma cultura em que sofrer não é permitido ou tolerado, em que a dor deve ser escondida e negada a qualquer custo e acabamos por nos esquecer o quanto crescemos e aprendemos com os fatos que nos fazem sofrer. O desequilíbrio momentâneo do sofrimento pode nos impulsionar para a resolução dos conflitos adjacentes a ele, para a superação dos obstáculos e para a busca da felicidade.
Ver o sofrimento nessa perspectiva contribui para a atuação do psicólogo, pois é esta mesma a nossa função, mostrar outros olhares, outros prismas, outras faces daquilo que para nosso paciente parece ter apenas um dolorido ângulo. Cabe a nós utilizarmo-nos de conceitos como estes para a melhoria de nossas relações terapêuticas.
REFERÊNCIAS
Philosophy: A guide to happiness. Nietzsche on hardship, parte 1. Direção: Celia Lowenstein. Produção: Neil Crombie. Roteiro e apresentação: Alain de Botton. Produtora: Diverse, Channel Four Television Corporation. (9:37). 2004. Disponível em < v="P8J9y1tzuDI&feature=">. Acesso em: 26/10/2008.
C3%ADcios%20Monogr%C3%A1ficos/A%20Id%C3%A9ia%20de%20Sofrimento%20em%20Nietzsche.pdf > . Acesso em: 03/12/2008.
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